sábado, 16 de novembro de 2013

Rute




(...)

Da ponta do cigarro um filete de fumaça fugia rumo ao desconhecido. Ela encarava algo pela janela.Talvez fosse alguém,talvez fosse o tempo, talvez não fosse nada. O café estava sobre a mesa, flertando como uma mulher apaixonada. Bowie sussurrava que o amor estava perdido - " You refuse to talk but you think like mad ...". E ele tinha razão.

Não havia mais o que procurar na geladeira. Não havia cartas na caixa de correio, tão pouco vontade de que houvesse. Rute estava ali, padecendo. Procurando um bom motivo pra continuar com essa loucura. Viver. E nem sequer encontrava motivos, que dirá, bons motivos. Um envólucro tomou conta dos planos, e pretérito. O relógio parecia amaldiçoar cada instante que antecedia sua respiração. Mas ali estava ela, viva. E satisfeita com essa ideia. Entre uma tragada e outra o mundo girava sem importância. Como se a morte não fosse uma amiga que visita sem prévio aviso. Seria bem vinda quando viesse. E mesmo sob a falta de motivos que fizessem aquelas barulhentas batidas cardíacas serem menos desprezíveis, ela ainda estava ali. Então já passadas algumas horas entre cigarros, flertes pela janela, cafés requentados, o som de toques na porta trouxe a realidade de volta como um tapa no rosto.

- Ah, aí está você. Pensei que estivesse morta. - Não seria má ideia. Mas até mesmo ele sabia que Rute era egoísta demais para morrer. Isso era entregar-se. Algo que ela desprezava, mais que a si mesma.

- Você não tem nada melhor pra fazer,Edgar? Está um dia bonito.- Ela deu as costas para ele enquanto caminhava de volta à cozinha

- Senti sua falta. Ana se foi. Preciso de um lugar pra ficar. E você me ama. - E amava mesmo. Mas era o amor sem posse, sem necessidade, sem vontade, quase sem vida, amor de quem anseia por cura.

- Ela se foi ... Nós já sabíamos que isso iria acontecer, querido. Eu sinto muito.

E sentia. Mais café foi feito. E mais cigarros foram comprados. No rádio alguém sussurrava algo sobre um outro amor perdido. Talvez o amor fosse só isso, uma história cantada. Uma vítima querida, cheia de graça, que sempre morre no final, do jeito mais bonito.

- Você disse que iria parar de fumar - disse enquanto a observava. E Rute parecia flutuar com aquele vestido florido bem apertado na cintura,que dava um ar mais aconchegante à sua vida do que realmente era. De longe se veria sua indiferença fingida. Era um belo vestido,pensou Edgar.

Ela o olhou cinicamente terna. Algo no seu rosto pareceu ser uma ameaça de sorriso. Daqueles bem tristes, e perversos. Rute se levantou, colocou a xícara sobre a mesa. Tragou. Apagou o cigarro. Aproximou seu rosto do dele, frente a frente. E soltou a fumaça, bem devagar, como quem soprava a vida.

- Pronto, querido, parei. - ia sorrir, mas não sorriu. Se viu dentro dos olhos de Edgar, e não havia nada ali de que se orgulhar. Ele era assim, o espelho que refletia a podridão dentro dela.

Edgar a abraçou. E como um punhal,  a matou. Porque ela morria toda vez que lhe lhe dava amor.



                                                                             Elisama Oliveira  em, "Eu quis dizer,amor".


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Carta Pra Ela


Ana,

Que a gente faz quando o tempo leva uma vida toda pra chegar? Este tempo que é de chuva, que me prometeu. Não há nada a se fazer. E tu tens me dado tão poucos minutos no telefone, Ana. Tenho ficado perdido nessa cidade com nome de santo. E só o nome. Mas todos aqui parecem estar sempre chorando. Todos são tão sós, mesmo em mesas de bares cheias de almas. Te mando uma foto depois, criança. Aqui é sujo como em nenhum lugar. E nossos caminhos parecem sempre tortos. Eu me sinto triste só de olhar os outros sorrisos. Porque os sorrisos estão sangrando.
De um jeito sóbrio nascem os dias. Sob escombros de uma guerra perdida. Talvez não haja mesmo com o que se perturbar. Mas tudo perturba. Tudo parece trair o escuro. Tudo é corrompido. E tudo, ao fim do ciclo, parte.
Preciso ir embora, criança. Mas antes devo te dizer que as chaves não estarão debaixo do tapete dessa vez.
É tempo de seca. E eu sinto que mais ao sul o inverno chegou mais sereno. Talvez eu vá para lá. Te encontro na estrada, quem sabe..
Mas, sabe criança, em seu devido tempo, tudo renasce. Assim, não sucessivamente. Tudo. Ao tempo que lhe faz mais bonito.

Carregando a saudade no colo,
Edgar.

sábado, 11 de maio de 2013


Um delírio

  Em um desses mil tesouros perdidos estão guardadas todas aquelas cartas de quem não soube não ter amor.
  Foi de longe que avistei,num cantinho, uma dádiva que me recusei a cumprimentar. Olhei, sorri silenciosa. Cobicei por três segundos até que o som da avenida voltou feito um golpe. Eu não tinha tempo pra aquilo.
  É apenas um efeito dessa guerra em que me encontro. Me impondo limites, me dizendo o que não fazer, ser, estar.  Apesar das mãos tão sóbrias, sinto como se cada flor que eu toco adoecesse.
  Oz está em ruínas, e nós somos os culpados pelas estradas encharcadas de cravos despenteados. Um breve declínio. Quatro anos e a mesma doença. Essa que nos obriga a atropelar os dias.
  Tenho envelhecido três quartos de tempo à cada colheita. Isso, à muito, não me traz orgulho.

  Quero emprestado teus defeitos, tuas dores, desentendimentos que eu entendo, só pra ter certeza de que estou indo na direção errada.
  Construí uma casa com muros tão altos que me esqueci do quanto odeio estar cercada. Um casa, que era nossa, e toda nossa no jeito de existir. Existia por necessidade. A mesma que eu sinto pela vida. A mesma que a vida sente por você.
  Me traz de volta meus delírios, me dá no fim da tarde aquela ilusão, bem docinha. Me engana de novo, se é assim que chamam a eternidade.Volta, criança. Porque eu não quero ser adulto. Não quero ter resposta pra tudo. Não quero isto que estou querendo. Não querer:nada.



Elisama Oliveira

terça-feira, 30 de abril de 2013

Colápso


Bem debaixo do nosso nariz...
Foi dessa forma que o tempo veio e levou o que tínhamos de mais sagrado.
Foi dessa forma que a esperança foi ceifada.

Não sei bem o que dizer sobre o Edgar, alias, ele nunca se dá ao que dizer. Podia jurar que chorava enquanto ouvia uma musica na rádio, mas não. Era só o mesmo momento de sempre. Era triste.
Nunca o vi lamentar sobre o trem lotado, sobre a falta de educação das pessoa, sobre o governo, sobre crises. Não reclamava da economia, não comentava futebol, nem sequer falava de ciência. Mesmo que a vida o dominasse de êxtase. Acredito que não se deixava julgar absolutamente nada. Só observava. Porque amava observar, amava a vida, amava se deixar viver..

"Despedir-se deveria ser proibido". Disse-me uma vez em meio à uma caminhada que fazíamos. E disse sem sentimentalismo, sem tristeza. Disse quase deixando transparecer uma certa graça. Mas não deixou. Só disse. E eu segurei suas palavras por uns instantes. Cinismo. Esse era o tema da minha resposta:

- Mas as pessoas ainda fariam se lhes fosse proibido, Edgar. - Suspirei leve depois de responder. Sangrei cada segundo que antecedeu sua réplica.

- Fazem, não é? - ele riu desapontado - mas e se tivessem como pena devolver tudo o que nos levam quando se vão? E se fossem obrigadas a nos devolver aqueles pedaços que nos tiram? E se nem os levassem...

Desabou, aprisionado nesse momento. Chorava feito criança ao meu lado. Soluçava uma dor que eu entendia bem e da qual eu também era escrava. Era saudade. A saudade  é o preço que se paga pelos laços, sejam eles da cor que forem, do tamanho ou tecido que forem, custam tão caro. Nunca se pode dizer o quanto vão durar, as vezes duram muito, as vezes não. Daí partem. E nós somos partidos. Ali o amor se quebrou em mil pedaços antes de perfurar os sonhos do meu amigo. Naquele dia o céu era de um azul preguiçoso. Quase inverno. Mas o frio vinha mesmo  dos dedos de Edgar cravados no chão enquanto deixava vazar a falta. Infelizmente, minha vontade não era abraçá-lo, nem de tentar deixá-lo melhor. Eu o olhava, quase que religiosamente, cada músculo se comprimindo, cada lágrima que o inundava, cada sonho que o abandonava voando. Eu sentia o calor do seu corpo aumentar e só podia imaginar qual teria sido o tamanho do corte. Não importa, as feridas são sempre as mesmas. E a minha ainda estava aberta, respirando minha essência como um castigo por ter deixado aquela doença me entorpecer. E deixei. Assim como Edgar também havia deixado. Então ele precisava ser  punido. Precisava de cada instante daquele amargo. Precisava sentir o peito apertar até que gritasse com o Infinito lhe suplicando uma resposta. Todos precisam. Nós que caminhamos descalços na rua, que bebemos de cálices cheios de clichês e promessas, nós que buscamos essas flores envenenadas.

Cessou. Sentou-se. Me olhou como quem pede perdão. Eu o olhei recusando. Éramos parte de um ciclo rompido. Não havia com o que se surpreender. Ninguém sabe onde vai chegar quando pula de um abismo. E em todo aquele teatro montado à nossa volta só devíamos nos preocupar em sermos os melhores atores da temporada .Que cantem os pássaros e que desapareçam as flores. Fadados a não sentir nada. Mas não era isso que Edgar queria para si, e implorava pra que eu seguisse os mesmos caminhos.

- Você não pode ser abrigo da dor,não pode deixá-la aí dentro e ignorá-la - Disse-me outro dia, enquanto tomávamos café. Eu estava flertando pela janela com o mundo quando ele derramou essas palavras no meu vestido. Estavam mais quentes que o café. Virei o olhar para encará-lo, pasma.Lá estava ele, sereno, e imponente. Por que ele disse aquilo? Bom, isso eu já sabia. Se há algo que eu nunca fazia era dizer do que se tratavam as minhas preocupações.Mas é claro,Edgar não precisava nem preguntar. Não sei como ele fazia isto,mas eu podia jurar que ele ficava bisbilhotando na minha cabeça quando eu não estava olhando.


Ele tinha razão. E eu tinha uma blindagem fajuta em volta do peito. A verdade é que eu invento desculpas para não deixar que se vá aquele pensamento ridículo. Sem esperança, sem sonho, sem vontade.Mas como uma hospedeira morta, um prato cheio de arrogância que abrigava aquele pensamento. Eu o prendia entre uma tragada e outra. E me recusava a deixar que partisse. Mas Edgar tinha a razão.


Segurei a fumaça, quis rebater. Mas não o fiz. Soltei a fumaça para cima, soltei meus pedidos com ela. Que cada desejo tomasse um rumo diferente, assim como fizeram minhas partidas. Que voltassem feito a andorinha, trazendo a esperança. Que a esperança trouxesse meu Desatino. Meu pensamento ridículo. Se havia ainda um resto insignificante de fé sobre a minha alma, era toda direcionada à aqueles desejos. É mais difícil se acostumar com a falta quando o que falta fica brincando na sua mente e penteando o seu cabelo antes de dormir. É mais difícil deixar que se vá quando tudo o que falta está bem ao seu lado tramando a sua loucura. Nós dois conhecemos a falta de jeitos diferentes, mas no mesmo trajeto. Lutamos por anjos diferentes, mas com as mesmas armas. Ganhamos no que se diz respeito à liberdade de espírito. O problema, é que essa liberdade nos custou pelo menos três quartos de vida.



Mas eu ainda tinha Edgar, e isso me dava a impressão de ainda ter salvação. Não que acreditasse nisso, mas não o fazia desfeita também. Ele era minha única vontade de permanecer em cena, minha página favorita. E sei que me escreveria letra à letra até que fosse reconstruída. Foi assim que a vida decidiu me curar...