terça-feira, 30 de abril de 2013

Colápso


Bem debaixo do nosso nariz...
Foi dessa forma que o tempo veio e levou o que tínhamos de mais sagrado.
Foi dessa forma que a esperança foi ceifada.

Não sei bem o que dizer sobre o Edgar, alias, ele nunca se dá ao que dizer. Podia jurar que chorava enquanto ouvia uma musica na rádio, mas não. Era só o mesmo momento de sempre. Era triste.
Nunca o vi lamentar sobre o trem lotado, sobre a falta de educação das pessoa, sobre o governo, sobre crises. Não reclamava da economia, não comentava futebol, nem sequer falava de ciência. Mesmo que a vida o dominasse de êxtase. Acredito que não se deixava julgar absolutamente nada. Só observava. Porque amava observar, amava a vida, amava se deixar viver..

"Despedir-se deveria ser proibido". Disse-me uma vez em meio à uma caminhada que fazíamos. E disse sem sentimentalismo, sem tristeza. Disse quase deixando transparecer uma certa graça. Mas não deixou. Só disse. E eu segurei suas palavras por uns instantes. Cinismo. Esse era o tema da minha resposta:

- Mas as pessoas ainda fariam se lhes fosse proibido, Edgar. - Suspirei leve depois de responder. Sangrei cada segundo que antecedeu sua réplica.

- Fazem, não é? - ele riu desapontado - mas e se tivessem como pena devolver tudo o que nos levam quando se vão? E se fossem obrigadas a nos devolver aqueles pedaços que nos tiram? E se nem os levassem...

Desabou, aprisionado nesse momento. Chorava feito criança ao meu lado. Soluçava uma dor que eu entendia bem e da qual eu também era escrava. Era saudade. A saudade  é o preço que se paga pelos laços, sejam eles da cor que forem, do tamanho ou tecido que forem, custam tão caro. Nunca se pode dizer o quanto vão durar, as vezes duram muito, as vezes não. Daí partem. E nós somos partidos. Ali o amor se quebrou em mil pedaços antes de perfurar os sonhos do meu amigo. Naquele dia o céu era de um azul preguiçoso. Quase inverno. Mas o frio vinha mesmo  dos dedos de Edgar cravados no chão enquanto deixava vazar a falta. Infelizmente, minha vontade não era abraçá-lo, nem de tentar deixá-lo melhor. Eu o olhava, quase que religiosamente, cada músculo se comprimindo, cada lágrima que o inundava, cada sonho que o abandonava voando. Eu sentia o calor do seu corpo aumentar e só podia imaginar qual teria sido o tamanho do corte. Não importa, as feridas são sempre as mesmas. E a minha ainda estava aberta, respirando minha essência como um castigo por ter deixado aquela doença me entorpecer. E deixei. Assim como Edgar também havia deixado. Então ele precisava ser  punido. Precisava de cada instante daquele amargo. Precisava sentir o peito apertar até que gritasse com o Infinito lhe suplicando uma resposta. Todos precisam. Nós que caminhamos descalços na rua, que bebemos de cálices cheios de clichês e promessas, nós que buscamos essas flores envenenadas.

Cessou. Sentou-se. Me olhou como quem pede perdão. Eu o olhei recusando. Éramos parte de um ciclo rompido. Não havia com o que se surpreender. Ninguém sabe onde vai chegar quando pula de um abismo. E em todo aquele teatro montado à nossa volta só devíamos nos preocupar em sermos os melhores atores da temporada .Que cantem os pássaros e que desapareçam as flores. Fadados a não sentir nada. Mas não era isso que Edgar queria para si, e implorava pra que eu seguisse os mesmos caminhos.

- Você não pode ser abrigo da dor,não pode deixá-la aí dentro e ignorá-la - Disse-me outro dia, enquanto tomávamos café. Eu estava flertando pela janela com o mundo quando ele derramou essas palavras no meu vestido. Estavam mais quentes que o café. Virei o olhar para encará-lo, pasma.Lá estava ele, sereno, e imponente. Por que ele disse aquilo? Bom, isso eu já sabia. Se há algo que eu nunca fazia era dizer do que se tratavam as minhas preocupações.Mas é claro,Edgar não precisava nem preguntar. Não sei como ele fazia isto,mas eu podia jurar que ele ficava bisbilhotando na minha cabeça quando eu não estava olhando.


Ele tinha razão. E eu tinha uma blindagem fajuta em volta do peito. A verdade é que eu invento desculpas para não deixar que se vá aquele pensamento ridículo. Sem esperança, sem sonho, sem vontade.Mas como uma hospedeira morta, um prato cheio de arrogância que abrigava aquele pensamento. Eu o prendia entre uma tragada e outra. E me recusava a deixar que partisse. Mas Edgar tinha a razão.


Segurei a fumaça, quis rebater. Mas não o fiz. Soltei a fumaça para cima, soltei meus pedidos com ela. Que cada desejo tomasse um rumo diferente, assim como fizeram minhas partidas. Que voltassem feito a andorinha, trazendo a esperança. Que a esperança trouxesse meu Desatino. Meu pensamento ridículo. Se havia ainda um resto insignificante de fé sobre a minha alma, era toda direcionada à aqueles desejos. É mais difícil se acostumar com a falta quando o que falta fica brincando na sua mente e penteando o seu cabelo antes de dormir. É mais difícil deixar que se vá quando tudo o que falta está bem ao seu lado tramando a sua loucura. Nós dois conhecemos a falta de jeitos diferentes, mas no mesmo trajeto. Lutamos por anjos diferentes, mas com as mesmas armas. Ganhamos no que se diz respeito à liberdade de espírito. O problema, é que essa liberdade nos custou pelo menos três quartos de vida.



Mas eu ainda tinha Edgar, e isso me dava a impressão de ainda ter salvação. Não que acreditasse nisso, mas não o fazia desfeita também. Ele era minha única vontade de permanecer em cena, minha página favorita. E sei que me escreveria letra à letra até que fosse reconstruída. Foi assim que a vida decidiu me curar...