terça-feira, 15 de abril de 2014

The Catcher in the Rye

Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. 


- Salinger

Dopamina

eu não via a chuva
que nele chovia.

e era quente,
e o cheiro
da morte
da mulher
do abismo,
recente.

eu não via o fogo
que nele ardia.

molhava
todo o toque
e o gosto
espalhava
queria curar-se
e era cura
e curou-nos.


Depois, só.




Elisama Oliveira

segunda-feira, 17 de março de 2014

* incertain

 nous vivons seul 

A gente vive baixinho, admirando os velhos costumes, pendurando os bons tempos na parede. Fazendo do tempo um amigo bom que visita pra fazer rir, fazer chorar, lembrar viver. A gente vive escondido, nunca alheio ao espaço entre o medo e a felicidade. Destratando os corruptos amantes que fizeram do obscuro um lar. Abraçando as virgens desencontradas nos leitos abandonados. A gente nunca grita, a gente nunca foge, a gente nunca deixa fugir. Buscando o que não tem nome, sorrindo pra o desconhecido, vivendo o desencontro. Lutando uma guerra inexistente, revolucionando um mundo morto. A gente não tem coração, mas bate, e bate forte, ansiando a vida. A gente ama e não tem coração, porque assim não morre. A gente nunca morre. Mas deixa de existir, todo fim de tarde. Sem pestanejar. E o tempo nos cura. Mesmo que a gente não esteja doente. Deixa de existir pra gostar de café, pra nunca mais ver a lua, pra nunca mais chegar tarde, pra gostar menos de "gente", e não ter mais certeza de nada, e não querer mais a paz, e buscar capital, e fazer desse capital a paz. Mas o capital nunca é o bastante, daí que a paz nunca vem. A gente vive baixinho, ouvindo o amor cantar.



Elisama Oliveira  em  "Quando eu vivia nos desfiladeiros"









sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

* carmina

Nas mesas de bares imundos cheios de mentes tão obscuras quanto vazias que aspiram a chegada do fim, há poesia. No fim da rua, virando a esquina, ao lado do lixo, cheirando à morte, sem expectativa, há poesia.

- Ah, a poesia é bonita. Dama imaculada de belos cabelos com toque suave e som de chuva. A poesia é limpa, livre, leve. Alheia à podridão do vasto mundo pecaminoso onde os homens se deitam.

Não, meu bem. A poesia também é triste. Mulher ingrata, que move o tempo. Seduz os homens de bem, e condena os homens de mal. Vil, como o fundo o poço. O mais profundo andar do mundo. A poesia também é escura. Amante dos amargos, dos infelizes. Dos que esperam o que não volta. Dos embriagados e perdidos. O que mata, e faz viver.



Elisama Oliveira

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

10-equilíbrio




Caminhou até o telefone tentando não pensar na besteira que aquilo significava. Colocou o cigarro nos lábios enquanto usava as mãos para procurar a agenda,encontrou, discou. Três toques:

- Alô?

- Onde está Edgar? - Rute questionou, tentando não parecer desesperada.

- Está comigo, é claro. Tomando café. Por quê?

- Não seja estúpida. Mande-o vir pra casa.

- Ele não tem casa, Rute.

- Sim, ele tem. E é aqui. O que ele está fazendo aí, Lúcia? Você não se cansa de atormentá-lo?

- Não seja ridícula. E não finja que se importa com o que ele faz. Ele vai embora quando quiser, mona amour.

Rute desligou. De fato estava sendo ridícula. Mas não, de fato,não se importava. Acendeu outro cigarro e abriu uma cerveja. Ficou ali, sentada no chão, não pensando em nada, por quase uma hora. Depois começou a imaginar como seria, ver o céu de uma montanha bem alta. Devia ser lindo. Mas, se era, não fazia diferença. Talvez, quando chegasse lá só importasse o abismo à frente. É lá que um demônio deveria viver, no abismo. Ela achou que riria com esse pensamento. Mas não riu. Que vaidade se comparar à um demônio. Sentiu um desprezo tão grande e quis chorar. Então o telefone tocou.

- Alô.

- Por quê não sai um pouco de casa?

- Por que você não volta pra casa?

- Lúcia precisava conversar.

- Não. Ela precisava transar com alguém.

- Talvez eu transe com ela.

- Que seja, Edgar. Mas volte pra casa.

A risada dele foi alta o bastante pra que Rute distanciasse  o telefone do ouvido. Era um bom som a se ouvir.

- Ouça, Rute, não seja ruim com ela. Estamos todos sentindo falta de Ana. Você não está sofrendo mais, ou menos do que Lúcia.

Rute desligou. É claro que estava. Acendeu outro cigarro e se deitou na varanda, encarando o teto enquanto fumava. O gato preto que Edgar havia lhe dado se enroscou entre as suas pernas  e ficou ali. Ela o observou pegar no sono rapidamente, e viu sua respiração diminuir o ritmo. Quase uma exercício de paz. Naquele momento nada mais importava. E ela desabou no mais profundo dos desesperos, procurando algo no que se segurar. Chorou, expulsando de si os demônios. Chamou por Ana mil vezes, até que sua voz não passava de um som vago no vento, rasgando a monotonia do tempo. Era disso que precisava: vazar. E, e x t r a v a z. Lavar de um todo a dor que ali se deixou. Se sentou, e se obrigou a aceitar que Ana não voltaria, que não se podia mais viver do avesso. Ela ainda estava viva, e precisava acreditar nisso. Lavou o rosto devagar, pressionou a toalha sobre ele sem esfregar, e se encarou no espelho. Ela era mesmo bonita, como diziam. Mas haviam marcas de infelicidade por toda parte. Isso precisava acabar. E acabaria.



Já estava mesmo na hora de se recompor.